Estilo Abbas: um cinema na contramão
Influenciado por características do cinema neo-realista italiano e marcado por uma veia realista, próprio do documentário (influência do inicio de sua carreira como curta metragista e autor de documentários para televisão), Abbas Kiarostami constrói um cinema antítese às grandes produções de Hollywood.
Seus filmes não se destacam por maravilhosos efeitos visuais feitos por meio da computação gráfica, ou por engenhosas (e caríssimas) tomadas de câmera. Pelo contrário, o que encanta, surpreende e diferencia o cinema de Abbas kiarostami é a história.
Ao contrário de contar uma historinha com principio, meio e fim, mastigada e empurrada para o público, e por vezes encharcada de efeitos especiais, como o faz a maioria dos atuais filmes hollywoodianos, Abbas Kiarostami constrói um cinema na contramão. Adepto da não-narratividade, os filmes de Abbas Kiarostami tem sempre um ponto de partida, mas jamais um ponto de chegada.
Sua falta de narrativa não é à moda do francês Jean-Luc Godard ou do americano David Lynch. A narrativa de Abbas Kiarostami é até linear, segue os passos dos personagens, respeita a linha temporal. Simplesmente não há grandes ações ou acontecimentos, não existem momentos de adrenalina, quase não há conflitos a serem resolvidos. As coisas apenas acontecem. O que dá maior significado ao cinema de Kiarostami é o movimento. Em praticamente todos os seus filmes, o carro é peça-chave da não-narratividade. Para Abbas, o carro não é veículo de perseguição ou caçadas. É objeto catalisador de curiosidades, investigação, descobertas, inserção em novos universos, realidades e desejos.
Acima de todas as coisas, o que fica dos filmes de Kiarostami é o apego imenso à vida. O valor que o diretor dá ao viver certamente é o grande mote de todo o seu cinema.
Concluindo uma análise do estilo de fazer cinema de Kiarostami, vale citar o próprio diretor: “A primeira geração de cineastas, de quando nasceu o cinema, olhava a vida e fazia filmes. A segunda olhava para esses filmes e para a vida e fazia filmes. A terceira voltava seus olhos para os filmes até então feitos para fazer seus filmes. A quarta que é a nossa, não olha nem para os filmes e nem para a vida para fazer seus filmes. Ela vê só o que é possível fazer em termos de efeitos e tecnologia”.
Assim, Abbas Kiarostami faz uma retomada aos primórdios do cinema com o objetivo de reeducar o olhar do público, viciado nos códigos já intrinsecamente estabelecidos pelo cinema do espetáculo. Ele quer fazer o espectador ter um novo olhar para as imagens dos filmes e aprender a saborear o que de realmente excepcional esta arte de mais de cem anos tem a oferecer: uma reflexão da vida e suas múltiplas e encantadoras facetas.
Abbas Kiarostami: um cineasta sob o risco do real
(texto na íntegra, escrito por Silvia Cristina de Paiva Pereira
Revista Espcom UFMG)

Além de oscilarem entre o documentário e a ficção, outro diferencial da obra de Kiarostami, intimamente ligado ao primeiro, é o local de destaque que ela reserva ao real. Manifesta desde o momento da concepção do filme, a realidade funciona em geral como elemento ativador da criação. A idéia de Close up, por exemplo, surgiu de uma notícia de jornal relatando a prisão de um homem que se fez passar pelo cineasta Malkmalbaf. E a vida continua (1992), por sua vez, é fruto de uma viagem feita pelo cineasta às áreas afetadas por um terremoto em busca dos meninos que atuaram em Onde fica a casa do meu amigo?
Os filmes partem de um acontecimento do mundo, mas o intuito não é simplesmente narrá-los. “Se o cinema consiste em contar histórias, está em perigo” (KIAROSTAMI apud BERNADET, 2004:94). O esforço é no sentido de dar a ver nas imagens algo de singular deste real que capturou a atenção do cineasta. Para tanto, Kiarostami realiza um processo de reconstrução da realidade, ou seja, ele efetua “a criação de um mundo por meio da reconstrução de episódios ou acontecimentos mesclando realidade e ficção” (SENRA, 2003: 163).
Neste processo de reconstrução, o cineasta lança mão de locações naturais, atores não profissionais e valoriza a vida cotidiana e os personagens comuns. Há também o trabalho com roteiros incompletos, permeáveis à interferência externa. Não poderiam tais opções ser consideradas estratégias visando permitir que a cena seja rompida, fendida pelo real e que, nessa fricção do filme com a realidade, algo próprio desse real se inscreva nas imagens?
Ao trabalhar com variáveis que escapam ao controle total do cineasta e permitem que, em certa medida, o real atravesse o filme, o cinema de Kiarostami se aproxima do documentário. No entanto, o que marca uma diferença entre o seu cinema e o documental é a desenvoltura com que ele lança mão dos recursos expressivos do cinema a fim de melhor dar a ver esse real que exerce uma força de resistência ao ser filmado. “Para mim, a realidade filmada não é mais real. Portanto, trucagem e maquinaria permitem simplesmente voltar à realidade que somos em geral incapazes de filmar” (KIAROSTAMI apud BERNADET, 2004:128).
É em busca dessa dimensão do real que não se deixa domesticar pela câmera que o cineasta, por exemplo, passa dez horas filmando o julgamento de Sabzian cuja duração foi de apenas uma hora [3]. Esta também parece ser a motivação de o cineasta optar por um ator para interpretar seu papel em E a vida continua, mas colocar algumas pessoas que atuaram no filme Onde fica a casa do meu amigo? representando a si mesmas.
Mas de que modo o real atravessa os filmes de Kiarostami? Uma possível resposta passa pela disposição do cineasta em deixar brechas em seus filmes que serão ocupadas e, algumas vezes, até perfuradas por algo da realidade que não pode ser diretamente captado pela câmera cinematográfica. Uma fresta, por exemplo, que o cineasta parece deixar para que o real possa passar, diz respeito à seleção dos atores. Kiarostami trabalha, preferencialmente, com atores não profissionais, selecionados nas regiões onde o filme será rodado. Ao escolher seus atores no local das filmagens, entre pessoas que efetivamente vivenciam aquela realidade, Kiarostami permite que o real perpasse o filme através dos corpos e das encenações. Esses personagens “nos fazem conhecer e reter, antes de tudo, que existem fora do nosso projeto de filme” (COMOLLI, 2001:105). E é justamente por existirem para além do filme, que eles escapam ao controle do cineasta. Esses indivíduos irão interferir na relação e nela inserir “tudo o que a experiência de vida neles terá modelado” (COMOLLI, 2001:105).
Ao se referir ao modo como certo tipo de documentário captura o real, Comolli parece sintetizar o modo como acreditamos que Kiarostami lida com o real em seus filmes:
Isto quer dizer que nós filmamos algo que não é visível, filmável, não é feito para o filme, não está ao nosso alcance, mas que se encontra lá com o resto, dissimulado pela própria luz ou cegado por ela, ao lado do visível, sob ele, fora do campo, fora da imagem, mas presente nos corpos e entre eles, nas palavras e entre elas em todo o tecido que trama a máquina cinematográfica. (COMOLLI, 2001:105)
Outra característica importante na obra de cineasta é o papel fundamental que ele reserva ao espectador na experiência cinematográfica. Dele, o cineasta espera um trabalho ativo na construção do sentido das imagens. “O único meio de pensar um novo cinema é dar maior importância ao papel do espectador. Devemos encarar um cinema inacabado e incompleto para que o espectador possa intervir e preencher os vazios, as lacunas” (KIAROSTAMI apud Bernadet, 2004:53).
A fim de deixar espaços para a participação do espectador, Kiarostami lança mão de algumas estratégias buscando potencializar a relação filme/espectador. As mais recorrentes são a não finalização do enredo, a utilização de planos longos, a construção gradual da história, omitindo algumas informações que fechariam o sentido numa única direção e a inserção de planos aparentemente pouco informativos. Os filmes de Kiarostami parecem buscar uma participação do espectador de modo relacional. Ele não vai lá reconhecer sentidos já latentes no filme, mas sim construir sentidos a partir da relação que eles estabelecem com o filme.